segunda-feira, 23 de abril de 2012

Totalmente?

As mensagens de correio eletrónico que as editoras de manuais escolares enviam aos professores, nesta altura do ano letivo, são tão interessantes quanto a sua estratégia de marketing presencial. Atente-se na mensagem-tipo que se segue, destinada a docentes do primeiro ciclo do Ensino Básico, que considero, de entre as várias que li, de grande interesse, como objeto de reflexão pedagógica.

Estou de volta com uma coleção ainda mais completa e totalmente adequada aos novos programas, metas de aprendizagem e orientações curriculares. Este ano, com os projetos de Língua Portuguesa e Estudo do Meio – 3.º ano, ofereço-lhe um conjunto de recursos de apoio às suas aulas que contextualizam a aprendizagem de uma forma lúdica, interativa e motivadora. Clique nos vários projetos em baixo e fique a conhecer toda a nova coleção. Saudações (nome da editora, não dum representante).
Detendo-me em questões pedagógicas que, afinal, é isso que mais interessa. No primeiro parágrafo li que a coleção de manuais é “totalmente adequada aos novos programas, metas de aprendizagem e orientações curriculares”.Releio-o e confirmo: consta na frase a palavra “totalmente”… Se fosse “na medida do possível”, eu não escreveria este texto, mas, estando essa palavra, não posso deixar de me interrogar.
 Como conseguiram os autores articular as orientações do Currículo Nacional do Ensino Básico (2001), dos novos Programas de Português (2009) e das Metas de Aprendizagem(2010), de modo a que os seus manuais estivessem “totalmente” adequadas com elas? É que, quem conhece e analisou, com grelhas e sem grelhas, sob este e aquele ponto de vista, parcial ou na globalidade tais documentos, percebe que a coerência entre eles deixa muito a desejar. O reconhecimento desta particularidade nos dois primeiros documentos (que deveriam ser absolutamente claros e compatíveis: um harmoniosamente na continuidade do outro, operacionalizando-o) terá sido um dos motivos que levou o Ministério da Educação a “encomendar” as Metas. Portanto, diria que a palavra “totalmente” talvez não seja a mais apropriada. Detenho-me também no segundo parágrafo para tecer duas considerações. Uma – decorrente da oferta de “um conjunto de recursos de apoio às suas aulas”, a qual se afirma ser feita aos professores – prende-se com a tendência, que tenho vindo a constatar e que não posso aceitar, de se dar tudo pronto aos professores: planificações, materiais didáticos, fichas de avaliação… reduzindo-se estes profissionais a meros aplicadores de decisões tomadas por outrem para gerir o seu próprio ensino.
 O Ministério da Educação começou esta “tradição” e as editoras têm-na aperfeiçoado. A investigação pedagógica preocupou-se com este fenómeno, que adquiriu ampla expressão nos Estados Unidos da América antes de a ter em Portugal. Nesse país, tais materiais, que agora vejo concretizados nos nossos manuais escolares, sobretudo nos materiais disponibilizados aos docentes, foram designados por “Currículos-à-prova-de-professor”. Deles se dizia poderem ser aplicados por qualquer professor, por pior que fosse, por mais mal preparado que estivesse. Esta designação é perfeita para designar o que referi no parágrafo anterior.

Outra – que decorre do entusiasmo pela contextualização da aprendizagem de uma forma lúdica, interativa e motivadora – relaciona-se com as crenças que alimentamos sobre como se deve ensinar, embora os resultados académicos que obtemos em todas as matérias contradigam essas mesmas crenças. De facto, a investigação pedagógica também se tem preocupado em perceber se a contextualização e o lúdico constituem mais-valias em termos de aprendizagem. A resposta é muito simples: Não. A contextualização, se entendida como a estratégia que consiste em situar as aprendizagens na vivência concreta, quotidiana, prática dos alunos, levanta problemas de desenvolvimento de competências abstratas, de restrição do conhecimento a adquirir. E, se incidente na vida privada e íntima dos alunos, não pode deixar de levantar problemas relacionais e éticos. Também a transposição do lúdico para os ambientes de educação escolar é um erro. O lúdico e o trabalho devem ser separados para que a criança tenha, desde cedo, a noção de que há um espaço/tempo de aprendizagem formal e outro em que pode e tem o direito de brincar. Isto não significa, naturalmente, que os ambientes de aprendizagem devam ser pesados, taciturnos...
A motivação é um outro assunto: o ensino deve contemplar esse  aspeto, mas não da maneira como os manuais escolares de algumas editoras preconizam. Havendo suficientemente investigação pedagógica também neste campo, não posso deixar de perguntar: porque é que não é devidamente usada?


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